Consciência Negra: servidoras do IFS relatam os desafios do negro na sociedade
Como é possível que o país no qual mais da metade da população seja composta por negros dê a apenas 17% deles a possibilidade de chegar a cargos de liderança? No mês que se comemora o Dia da Consciência Negra, conversamos com duas servidoras do IFS que quebraram paradigmas e hoje ocupam cargos de chefia em setores-chave da instituição
Observem os dados: pesquisa do Instituto Ethos mostra que somente 4,7% dos cargos executivos são ocupados por negros. Entre funcionários de nível hierárquico superior apenas aos estagiários, os brancos atingem 62,8% e os negros, 35,7%. Já 72,2% dos cargos de gerência são preenchidos por pessoas de pele clara, contra 25,9% de afrodescendentes. Um estudo do Ipea também é revelador: no serviço público, a presença do negro é reduzida em carreiras mais valorizadas. Na Diplomacia, eles representam 5,9% do total; na Auditoria da Receita Federal, a relação é de 12,3% e 87,7% a favor dos brancos. As estatísticas apresentadas até aqui fariam sentido se retratassem a realidade de países nórdicos ou asiáticos, cujas populações são compostas, na maioria, por brancos. Entretanto, as duas pesquisas foram aplicadas em um território habitado por 113 milhões de afrodescendentes, quase 54% do total. A discrepância demostra que alcançar objetivos pessoais de vida é uma tarefa ainda mais árdua para o negro – e, claro, que devemos valorizar às pessoas que, mesmo diante dos inúmeros obstáculos, mostram que cor de pele não é fator determinante para atribuir competência e profissionalismo.
O abismo de oportunidades que separa brancos e negros não foi suficiente para enfraquecer Irinéia Rosa do Nascimento na busca dos seus sonhos. Hoje, ela é professora efetiva do Instituto Federal de Sergipe (IFS) com doutorado na área de zootecnia e ocupa o cargo de diretora de assuntos estudantis. Irinéia ressalta, porém, que a jornada passa longe de ser fácil e aponta diversas situações em que, de forma recorrente, vê-se submetida somente pela cor da pele. “Em bancos, já fui impedida de entrar antes de abrir a minha bolsa; em lojas, sutilmente sou vigiada. Em inúmeras situações noto o desdém de indivíduos que gostariam de dizer que ali não é meu lugar”.
Nas ocasiões em que foi exposta ao preconceito, Irinéia encontrou um recurso para se impor: “encaro firmemente essas pessoas e, de forma educada, indago se tem algo errado. O pior é que elas se acovardam e não dizem o que estão pensando”. Diante das experiências de vida que acumula e das vitórias que alcançou, a docente se vê como exemplo para seus alunos. “Essa é uma das motivações para exercer o cargo que agora ocupo. Digo para eles que não devemos acreditar em quem nos diz que não somos capazes. Estudar e persistir têm suas recompensas, sim. A educação revoluciona”, ressalta.
Quem indica?
Um dos fatores que ajudam profissionais a se colocarem no mercado ou de preencherem as vagas de chefia é o capital social que elas possuem, ou seja, a rede de contatos que constroem ao longo da vida que facilita o acesso ao top o. Esse circuito de oportunidades acontece, por exemplo, quando um ex-colega de universidade indica um amigo para disputar uma boa chance na empresa que atua ou um tio que conhece a formação do sobrinho e o referencia para um emprego em uma multinacional. Nesse quesito, a pesquisa publicada pelo Ipea também dá boas pistas sobre a possível raiz do problema: os negros representam três quartos da população menos abastada. Isto é, em cada quatro pobres, três são negros.
A falta de um networking influente, de modo geral, deixa mais uma vez o afrodescendente em desvantagem. Para o professor de sociologia do Campus Itabaiana, Vinícius Rodrigues Alves, os contatos que se estabelecem ao longo da trajetória de um indivíduo são usados como condição de acesso, situação que contribui para que a sociedade privilegie os que já se encontram no topo da hierarquia social. “Nota-se de forma bastante evidente que a nossa formação histórico-política é marcada pelo que muitos chamam de pessoalização administrativa, ou seja, se você se encontra inserido em uma rede de alto valor de capital social, você se insere, do contrário, o que notamos é a exclusão”, aponta Vinícius.
Trajetória de vida sem privilégios também possui a diretora geral de bibliotecas do IFS, Kelly Cristina Barbosa. Paulista de origem humilde, começou a trabalhar aos 14 anos em uma universidade que a empregou até os 29 anos. “Foram tempos muito difíceis, porém de grandes e preciosos aprendizados”, relembra. A tarefa de conciliar trabalho, estudo e família foi árdua, mas lhe deram bagagem para alçar voos maiores. Hoje, à frente de um dos setores que mais se profissionalizou no IFS, Kelly se orgulha das dificuldades que deixou para trás e lamenta que, mesmo no século XXI, cor de pele represente obstáculos. “Sabemos que no mundo inteiro o negro é tratado como cidadão de segunda ou terceira classe. Isso é visível na forma de remuneração, nos papeis secundários que os artistas negros assumem na televisão e no cinema, nas chances de emprego e no acesso à educação”, explica.
A resposta que Kelly deu diante das barreiras que a vida colocou foi estudo e trabalho. “Acho que nós, negros, através de muito sofrimento, já conseguimos vencer batalhas e conquistar espaço na sociedade, afinal somos iguais, independentemente de cor e classe social”, diz. Mesmo reconhecendo os avanços, Kelly não se furta de engrossar o coro com a frase que os movimentos sociais em todo o mundo buscam dizer ao máximo de pessoas: “Ainda há muita luta pela frente”.
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